Profecia, existência e Teologia da Cultura na
poética de Belchior
Resumo:
A obra poética do cantor popular
Belchior tem uma natureza existencial e profética, possível de ser estudada
como discurso religioso e cristão, em contraste ao anti-cristianismo pre-sente
na cultura latino-americana. A temática do seu discurso poético e profético é o
problema racial, quando a pureza nordestina é lançada no horizonte do paraíso
imaginário da metrópole, mas que se transforma no símbolo de desterro. Por
conta disso, temas da teologia elaborada por Tillich, como inocência sonhadora,
preocupação última, vida sem ambigüi-dade, por exemplo, podem ser encontrados
em diálogo com a obra poético-profética de Belchior. Ao negar o cristianismo, e
dimensioná-lo como um não-cristianismo, Belchior elabora, pelo viés da
contradição, um novo sentido do modo de ser cristão e a busca do Pa-raíso em
sua condição de inocência. Este trabalho se propõe a refletir sobre tal
hipótese.
Palavras-chave: Belchior, Paul Tillich, poesia, existência,
Teologia da Cultura, reli-gião e música popular brasileira, voz profética.
Abstract:
The poetic work of the pop singer
Belchior has an existential and prophetic nature that can be analyzed as
religious and Christian speech, in contrast to anti-Christianity present on the
Latin-american culture. The theme of his poetics and prophetic discourse is the
racial prob-lem, that shows itself when the purity Brazilian northeastern is
drawn into the horizons of the metropolitan’s imaginary paradise, which
transforms this northeastern purity in a symbol of deportation.Because that,
themes from theology made by Tillich, such as dreamer inno-cence, ultimate
concern, life without ambiguity, for example, can be in dialogue with the
poetic-prophetic Belchior’s works. When Belchior denies the Christianity,
calling it non-Christianity, he elaborates, by contradiction, a new sense of
being Christian and to seek the paradise in its condition of innocence. This
article tries to reflect about this hypothesis.
Keywords: Belchior, Paul Tillich, Poetry, Existence,
Theology of Culture, Religion and Brazilian Popular Music, prophetic Voice.
Estudar a poética de Belchior,
Antônio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernan-des, nascido em Sobral, Ceará,
em 1946, não é uma tarefa simples. Como todo poeta que prima pela liberdade, o
tom de seu discurso não pode ser enclausurado num único sistema. Sua produção
coincide com um período de profundas mudanças sociais e expectativas no que diz
respeito a uma esperança na América Latina. Desde o final dos anos 50, início
dos 60, a região vivia a expectativa dos resultados dos seus muitos caminhos.
Não se sabia se a vocação econômica, com raiz nitidamente agrícola-pastoril,
iria se enveredar pela tomada do sistema pelo oprimido ou se haveria uma
radicalização reacionária por meio de golpes de extrema direita que tomariam
conta do continente. Desencadeou-se a secunda.
A questão político-econômica não era
a única ameaça. Se esta representava o poder, havia outra, presente na
sociedade e cotidiano, resultado da pluralidade cultural e regiona-lismo, o
problema racial. Isto quer dizer que o sujeito oprimido encontrava-se não
apenas na relação capital-trabalho. A dinâmica étnica é tomada como exemplo, na
obra de Belchior, pela figura do deslocamento do nordestino para as babilônias
do sul, símbolo de cativeiro e desterro, o que por si só já se dá como
simbólico-religioso. Deste modo que aparece na poé-tica de Belchior, é o drama
que não poderia ser resolvido apenas por uma distribuição de rendas, que é o
preconceito. A sua temática existencial brota desse debate. Belchior poderia
ser assim considerado como uma voz profética, e o discurso voltado para o
problema da raça, e na ameaça existencial do desterrado, o caminhar contínuo em
busca do paraíso.
Nesse caso, em Belchior, a existência
é ameaçadora, e no amor residiria a superação das condições desintegradoras do
ser. Contudo, ainda é prematuro caminhar por esse viés, sem antes
compreendermos se de fato é possível uma leitura de algum método existencial em
sua obra, mesmo considerando a sua negação expressa, por vezes jocosa, do
cristianismo ocidental. Seria necessária uma leitura de superação da negação
que Belchior faz do forma-lismo cristão em nossa sociedade, mediado pela
possibilidade dogmática, e uma tentativa de aproximação pelo viés de uma
teologia de natureza existencial. Com isso, possivelmente, seria possível observar
que, na negação e crítica ao cristianismo, o que há é a presença de um
imaginário religioso existencial. Bem, essa será a nossa tarefa como
apontamento.
Pela natureza do texto e seus
limites, não foi possível estabelecer parâmetros e con-ceitos de termos
específicos, principalmente do pensamento de Tillich. Expressões como correlação,* vida sem ambigüidade*, teologia da cultura epreocupação
última, por exemplo, são tomadas
considerando já serem conhecidas pelo leitor.
O debate sobre a natureza religiosa
de um discurso existencial necessita buscar, pri-meiramente, o lugar do ser
nesse discurso. Não é preciso reafirmar aqui que o ser seria um exceder de
sentido do ente, superação da objetividade e lugar “de onde” poderia emergir a religião.
Heidegger havia dado à pergunta
ontológica um “conteúdo” pela busca de sentido do ser, o que esgotaria o seu
próprio sentido no horizonte existencial, no ser-para-a-a morte. A teologia
responderia a isso, procurando demonstrar que a pergunta ontológica é um partir
do ser, mas limitar o seu horizonte ao existencial é estabelecer
antecipadamente a sua possibi-lidade hermenêutica. Tillich reagiu a isso: a
pergunta ontológica não tem que se limitar ao limite da existência, para ser considerada
ontológica. A pergunta é do ser, não tem conteúdo, e emerge na cultura como a
pergunta pela preocupação
última e vida sem ambigüi-dade, na tentativa de superar as condições ameaçadoras
da existência. A existência, para Tillich, não se constitui apenas como análise
de sua estrutura, como na analítica de Heideg-ger em Sein und Zeit, mas se dá como existência na dimensão teológica
da cultura, e nesta aparece como pergunta pelo ser-em-si.
A questão é que, se Belchior é um
poeta que discute a existência, talvez a primeira busca que devêssemos fazer
seria a de tentar encontrar se há em seu discurso uma natureza essencial, uma
tentativa de encontrar o ser, que pudesse exceder a simples existência,
apon-tando para uma ontologia que se manifesta como pergunta ontológica, numa
aproximação mais clara do discurso teológico.
Em “Alucinação”, Belchior afirma não
estar interessado em nenhuma teoria, nenhu-ma fantasia, ou mística oriental,
mas a alucinação é o suportar o dia-a-dia no delírio com coisas reais. No caso,
coisas reais são as condições de existência, o que é dado, o ser lança-do, se
optarmos por Heidegger, ser-no-mundo, em busca de sentido. Seguindo os versos
da canção, Belchior se envereda por esta condição de existência e faz um relato
do cotidiano do preconceito, sonhos e limites: o preto (raça-preconceito), o pobre (capital-trabalho), estudantes(conhecimento e sonho), mulheres sozinhas (existência e angústia), blue jeans e motocicletas
*(alienação e fuga), *pessoas cinzas, normais (vida e desaparecimen-to), garotas dentro da noite (opressão e desumanidade), revólver: cheira cachorro(morte e animalidade), humilhados do parque com os
seus jornais (presença e esqueci-mento,
informação/desinformação e reaproveitamento de texto),carneiros, mesa, traba-lho (submissão
e produtividade), meu
corpo que cai do oitavo andar (vida-morte,
exis-tência e desintegração, liberdade e fim) e a solidão das pessoas dessas capitais (existên-cia e ameaça), a violência da noite, o
movimento do tráfego (dinâmica da vida e
impesso-alidade), um
rapaz delicado e alegre que canta e requebra, é demais!... (gênero e pre-conceito). Pouco adiante, doze jovens coloridos,
*expressão clara e irônica à tradição cris-tã, e com eles *dois policiais,
*símbolo da opressão e ameaça à vida. Ao contrário da visão profética da
*Laranja Mecânica, anunciando o
terror, o amor é dado como resposta e pos-sibilidade de mudança.
Todos os personagens constituem a
vida, com as suas ameaças, preconceitos e con-tradições. Não há teoria que dê
conta de explicar isso. Para Belchior, pelo menos em “Alu-cinação”, a
existência é trágica, o limite é o cotidiano, e a esperança é o amor.
Por essa perspectiva, contudo, com
uma poética da morte, bem poderia sugerir que Belchior seria devedor à
analítica de Heidegger, condição da angústia *e o *ser-para-a-morte,
*limitando-se ao ser dado. Entretanto, o poeta concebe um estado de pureza
essenci-al, semelhante ao que Paul Tillich chamou de *inocência sonhadora.
A condição trágica da existência é
uma leitura de contraste com a pureza do nordestino, idealizado no imaginário
da essência do rapaz latino-americano, vindo do interior. Naquela leitura, há
também a solidão de quem chega com os seus sonhos, a música e a promessa de que
há uma essência divina que espraia a existência. Tal existência se apresenta
como desconexa, e, num dado momento, existência emerge como ameaça, entre o
proibido e o permitido.
Entretanto, a referência à solidão
das pessoas nas capitais e a violência da noite su-gerem uma leitura de
contraste com o imaginário idealizado da essência do rapaz latino-americano,
vindo do interior, na canção “Apenas um rapaz latino-americano”. Nesta, há
também a solidão de quem chega com os seus sonhos, a música e a promessa de que
há uma essência que se espraia na existência, entre o proibido e o permitido. O
rapaz latino-americano, vindo do interior, é um profeta que não sabe compor,
senão palavras como nava-lhas. Ao invés do divino, traz uma palavra aguda, ao
invés da música suave, o conflito, di-ante da vida que não é apenas diferente,
é muito pior. Trata-se de um pessimismo existenci-al, mas que só pode ser
colocado a partir do descortinamento da chegada e o que encontra é um nada
divino, um nada sagrado, um nada maravilhoso e um nada misterioso, um nada
secreto. A hermenêutica existencial de um fatalismo apocalíptico dá-se como
relação, a par-tir de um imaginário puro, de quem vem do interior, para a
hecatombe urbana. Há um partir essencial no início da jornada, e a declinação
da essência que se dá como existência correla-ciona-se no espaço do cotidiano.
Daí não seria possível de se falar dos dramas existenciais de “Alucinação”, sem
um conceito de possibilidade de superação, que tem como fim o “a-mor”, mas um
ponto de partida como idealidade. Começo e fim se encontram, mediados pelo ter
que viver e existir.
Não há um algo escondido, como uma
virtude a ser procurada, ou possível de ser en-contrada. Atrás da ameaça
desintegradora, não há nada. O caos existencial pergunta, e o horizonte
hermenêutico se abre à superação da tragédia humana. Nesse caso, parece ficar
claro que a condição ameaçadora faz emergir a pureza interiorana, traz a
inquietude existen-cial da inocência
sonhadora. O paraíso se fora, e ao mesmo tempo é
desejado.
Ao emissário que vai para o Nordeste,
em “Baihuno”, Belchior faz uma análise existen-cial do meio urbano no Sudeste,
comparando-o à Babilônia, símbolo de desterro e cativeiro. Diz Belchior:
Conta
aos amigos doutores
que
abandonei a escola pra cantar em cabaré,
baiões,
bárbaros, baihunos,
com
a mesma dura ternura que aprendi na estrada e em Che.
Ah!
metrópole violenta que extermina os miseráveis,
negros
párias, teus meninos!
Mais
uma estação no inferno, Babilônia, Dante eterno!
há
Minas? Outros destinos?
Pouco adiante acrescenta:
Ao
pastor de minha igreja
diz
que essa ovelha jamais vai ficar branquinha.
-
Não vendi a alma ao diabo...
O
diabo viu mau negócio nisso de comprar a minha.
Se
meu pai, se minha mãe se perguntarem, sem jeito
-
Onde foi que a gente errou?
Elogiando
a loucura, e pondo-me entre os sonhadores, diz que o show já come-çou.
Trogloditas,
traficantes, neonazistas, farsante: barbárie, devastação.
O
rinoceronte é mais decente do que essa gente demente
do
Ocidente tão cristão.
Tomado como imaginário, se a
babilônia do desterro é o limite da ameaça e desencan-to, o Nordeste é o que se
perdeu, é o tribalismo, paraíso, a pureza, o que ficou antes do sonho, que
poderia não ter ido tão longe, como Minas no caminho, mas rumou ao limite e
horizonte, e caiu no vazio. Lugar da loucura e do drama real da existência, mas
que deve ser noticiado como a realização do sonho, do belo, ideal, mas que na
verdade se traduz como barbárie e devastação. Catástrofe, como existência.
A leitura da metrópole como o lugar
da desintegração do ser é o horizonte que se vê do paraíso, e tal espaço de
selvageria e angústia existencial pode ser qualquer lugar, uma vez que o
imaginário do paraíso não pode ser transferido. A pureza, o estado de inocência sonhadora, tem o seu “lugar” sagrado.
Em outra canção, “Tudo outra vez”,
Belchior coloca o nordestino como idealizado, mesmo diante do mundo europeu. Lá
também é desterro e ameaça. No texto, as coisas do co-tidiano, blusão de couro,
rede branca, cachorro ligeiro, são poeticamente colocadas em forma de saudade,
uma espécie de utopismo milenarista escatológico ao contrário. A língua, o
dis-curso, a expressão do idioma corrompe a pureza existencial. Belchior diz
“quero esquecer o francês”. O poeta contrasta a vida na Europa com o paraíso do
sertão. Deste modo, uma noite de prazer no Danúbio, e tem que ser Azul para ser
poético, não pode ser comparada com o magnífico sol e o amor de irmã no
interior do Brasil. O lugar sagrado da inocência não pode ser deslocado, nem
substituído, mesmo quando, aparentemente, as ameaças desintegradoras da
existência estejam presentes. Belchior deseja recuperar tudo outra vez. Na
mesma canção, o sertão se opõe ao Concorde, símbolo de deslocamento e
distanciamento do que há de mais puro.
O Nordeste, na poesia de Belchior, é
idealizado como o lugar da essência. Tal pureza se acaba, quando do encontro
com a metrópole, símbolo da ameaça existencial, num discurso de resistência a
Caetano Veloso, incapaz de se dar na existência com suas contradições, em
“Fotografia 3x4”, diz:
Em
cada esquina que eu passava um guarda me parava,
pedia
os meus documentos e depois sorria,
examinando
o três-por-quatro da fotografia
e
estranhando o nome do lugar de onde eu vinha.
[...]
Veloso
o sol não é tão bonito pra quem vem do norte e vai | viver na rua.
Em “Bahiuno”, diz:
Gênios-do-mal
tropicais, poderosos bestiais, vergonha da Mãe Gentil.
Fosse
eu um Chico, Gil, um Caetano, e cantaria, todo ufano: ‘Os Anais Da Guerra
Civil’.
A redução da pessoa à expressão da
face em uma fotografia 3x4, é o contraste da fagu-lha essencial, preservada na
imagem, em relação ao mundo e universo que a ela se opõe. No discurso está o
sentido de humilhação, abandono, desintegração do ser, mas cuja fotografia, que
reproduz uma essência, não pode ser definitivamente aniquilada. O conflito de
ser e não-ser se dá como impasse e ameaça.
Portanto, poesia e voz profética, em
Belchior, são as mesmas coisas. Há uma crítica e inconformismo quando o poeta
presencia a ausência de condenação ao preconceito. O precon-ceito não poderia
ser ignorado, pois é fotografia, contradição e vida. Em “Conheço o meu lugar”,
Belchior expressa isso de forma bastante clara:
O
que é que eu posso fazer com a minha juventude
-
quando a máxima saúde hoje é pretender usar a voz?
O
que é que eu posso fazer - um simples cantador das coisas do porão?
(Deus
fez os cães da rua pra morder vocês
que
sob a luz da lua, os tratam como gente - é
claro!
- a pontapés).
[...]
Fique
você com a mente positiva que eu quero a voz ativa
(ela
é que é uma boa!)
pois
sou uma pessoa.
Esta
é minha canoa: eu nela embarco.
Eu
sou pessoa! (A palavra ‘pessoa’ hoje não soa bem - pouco me importa!)
Não!
Você não me impediu de ser feliz!
Nunca
jamais bateu a porta em meu nariz!
Ninguém
é gente! Nordeste é uma ficção! Nordeste nunca houve!
Não!
Eu não sou do lugar dos esquecidos!
Não
sou da nação dos condenados!
Não
sou do sertão dos ofendidos!
Você
sabe bem: Conheço o meu lugar!
A idéia da criação, Deus fez os cães da rua, estabelece a inacessibilidade à mudança do discurso
e do conteúdo da voz profética, que não pode ser outra coisa. O drama
existencial também não, e é simbolizado no limite do que seria o mais
desprezível: ser humano, poeta e profeta como cão de rua. A ironia do texto “a
palavra pessoa hoje não soa bem”, trata da in-versão e da mudança do sujeito do
discurso, o cão passa a ser o interlocutor, por desconhecer o sentido de ser
pessoa. Nesse caso, “ninguém é gente”, o sujeito é o ninguém, que é gente. No
fim, há a preservação do ser pessoa, o que se recupera como dimensão do
discurso profético, “conheço o meu lugar”. O “lugar” aqui não é um “onde”, mas
estado de existência que preserva a essencialidade de ser pessoa, pois o lugar
“Nordeste” não existe. Não se pode voltar para um lugar que não existe. O
Nordeste não existe, mas a pessoa sim. Trata-se de um imaginário construído
pela memória, mas que se apresenta existencialmente como ameaçador.
Assim, o discurso profético em
Belchior pretende avançar às expressões poéticas que não percebem as
contradições da existência, manifestadas na ameaça pelo preconceito. Só pelo
fato de se dissociar um ser puro e nordestino, vindo do interior, em contraste com
a vida ameaçadora na capital, que corrompe tal pureza e a degenera, a pergunta
que poderia ser le-vantada é se Belchior teria elaborado uma leitura de duas
essências: um ser do interior e um ser da capital.
É possível compreender essa poética
como a metáfora de ser e não-ser de Paul Tillich. O não-ser ameaça o ser. A
alteridade existencial em Belchior, como si-mesmo diante de si, aparece como a
dimensão dinamizadora que faz emergir a pergunta pela inocência sonhadora, do mesmo como o não-ser ameaça o ser e se traduz na
pergunta ontológica pela preocupação
última ou pela vida sem ambigüidade, para além das condições ameaçadoras da existência.
A condição pura só assim se dá diante do que lhe é oposto, o seu não, sua
negação, e os conflitos ameaçadores na existência, simbolizado no preconceito
que desperta busca do irrecuperável paraíso. Ser e não-ser se dão
dialeticamente necessários, em correlação, para a emergência do discurso
profético.
Belchior, nesse ponto é bastante
crítico: o discurso poético que não tem uma natureza profética causa a
desintegração do ser. Em “Comentários a respeito de John”, Belchior diz não ter
se esquecido da canção “Happiness is a warm gun”, dos Beatles e autoria de
Lennon. Belchior traz o imaginário do Oeste norte-americano, no tempo das
diligências, mediante o estilo musical, e mostra que a falta de percepção das
condições ameaçadoras da existência naquela canção, desintegram o ser, por
desintegrar a vida e o seu não. A felicidade, portanto, não pode ser uma arma
quente. O símbolo tomado é o da morte trágica de J. Lennon. O rosto-rouge e o
batom de Lennon são imagens de sua alienação existencial e ausência de voz
profética. Diz a letra:
Saia
do meu caminho, eu prefiro andar sozinho
Deixem
que eu decida a minha vida
Não
preciso que me digam de que lado nasce o sol
Por
que sei que bate lá meu coração
Sonho
e escrevo em letras grandes (de novo)
Pelos
muros do país
João,
o tempo andou mexendo com a gente sim
John,
eu não esqueço (oh no, oh no)
A
felicidade é uma arma quente, quente, quente
Sob
a luz do teu cigarro na cama
Teu
rosto-rouge, teu batom me diz:
Belchior resiste a qualquer imposição
religiosa, do mesmo modo como Tillich, ao que chamou de heteronomia. É possível compreender um discurso também de
condenação à autonomia em Belchior, mas só se esta for representada pelo
discurso de autonomia
existencial gerada pela liberdade (dos outros) e
a desumanidade exasperada no descontrole de quem, por si, se impõe e ameaça a
vida, como no caso da metrópole, demonicamente mani-festada no cooptação da
pureza e ingenuidade de quem dela se aproxima. Isso, contudo, deveria ser
tomado por inferência.
No caso da resistência à heteronomia religiosa, é possível encontrá-la de forma mais
clara, expressa em “Como o diabo gosta”, por exemplo:
Não
quero regra nem nada
Tudo
tá como o diabo gosta, tá,
Já
tenho este peso, que me fere as costas,
e
não vou, eu mesmo, atar minha mão.
O
que transforma o velho no novo
bendito
fruto do povo será.
E
a única forma que pode ser norma
é
nenhuma regra ter;
é
nunca fazer nada que o mestre mandar.
Sempre
desobedecer.
Nunca
reverenciar.
Nada de regras, imposição ou qualquer
coisa que possa determinar o que deveria ser a existência. O diabo é o símbolo
profético de resistência às regras, e é tomado aqui como uma leitura
carnavalesta do discurso poético. É o abuso da inversão, o exagero, a busca do
limite do que seria o total oposto, como forma de realçar no discurso literário
a malignidade das re-gras. A inversão do texto sagrado, “o que transforma o
velho no novo”, em alusão ao discurso bíblico de não se colocar vinhos novos em
odres velhos, em desprezo ao que é velho, é agora tomado o velho como sendo o
próprio discurso cristão que precisaria ser transformado. Para tanto, a
desobediência a toda e qualquer determinação, e “nunca fazer nada que o mestre
mandar, sempre desobedecer, nunca reverenciar”: esse é bendito fruto.
Observado por essa perspectiva,
pode-se entender que Belchior estaria sugerindo um anti-cristianismo. Não é
possível afirmar se o poeta está no limite do ateísmo, ou se a sua re-sistência
se dá em face da religiosidade constituída e opressão religiosa cristã, pela
via dog-mática. Ao que parece, trata-se da última, pois o seu discurso de
resgate da vida, tema central do cristianismo, é preservado como conteúdo da
ação e voz profética.
Então, se há uma tentativa de resgate
do que há de mais puro, em meio aos dramas ameaçadores da existência na
desintegração do ser, um sonho de paraíso perdido e recupera-do, e a
possibilidade do horizonte profético ser encerrado com o amor, ao que parece,
tais temas são resultado de uma cultura ocidental, que existencialmente, na
linguagem de Tillich, seriam símbolos dapreocupação última e
o desejo existencial de um encontro com a inocência sonhadora. Se isto estiver correto, o discurso poético e
profético de Belchior, está na trilha de um pensamento cristão existencial, e
sua negação religiosa pode ser mais bem compreendida como resistência a um
modelo cristão, que desde o início mostrou-se terrivel-mente aniquilador. Como
diria em “Quinhentos anos de que?”: “Não sabia o que fazia, não, D. Cristóvão,
capitão. / Trazia, em vão, Cristo em seu nome / e, em nome d’Ele, o canhão,” –
o trocadilho “vão”, como “em vão” somado a “Cristo”, que lhe deu o nome
“Cristo-em-vão”, teria sido o fim do Paraíso, e o cristianismo um
anti-cristianismo.
Com outras palavras, ao que parece o
cristianismo, na forma como deveria ser, solução e sentido ao Paraíso, ou inocência sonhadora, se opõe ao anti-cristianismo que se mostra latente
no preconceito e na criação do desterro. Sendo assim, “o rinoceronte é mais
decente do que essa gente demente do Ocidente tão cristão.”
Belchior é uma voz profética, sem
dúvida. Seu elemento de discurso é o contraste, numa luta contra o preconceito.
Belchior também menciona a frivolidade da vida, e o medo existencial que está
presente num avião, que não se sabe se é o medo do simples estar, mas do
deslocamento representado pela viagem da vida, apaziguado pelo símbolo
feminino, de uma presença quase materna. O medo, na canção, é adolescente e a
sexualidade estaria na aeromoça, e não em quem lhe segura a mão, símbolo da
vida, conduzindo o poeta-profeta às condições ameaçadoras da existência, lugar
da desintegração, para onde jamais seria possível voltar outra vez, fuga do
paraíso e morte, onde seria apenas voz.
É claro que a denúncia de Belchior se
reveste de uma natureza profética em favor da vida. A partir disso, o seu
discurso assume uma dimensão existencial, que não vê na prática religiosa
elaborada no cristianismo ocidental. Não há possibilidade de recuperação das
con-dições puras da existência e de qualquer retorno ao paraíso. Longe de ser
agnóstico, Belchi-or desenvolve temas que podem ser aproximados à teologia
existencial, também denuncia-dora, de Paul Tillich. Sua voz é profética, a
existência é ameaçadora, há um abandono e uma esperança de retorno ao Paraíso,
como inocência
sonhadora, uma não solução do ser no mundo
ameaçado por uma e uma constante condição desintegradora.
A pergunta que poderia ser levantada
é se Belchior intentou uma síntese deste siste-ma. Aparentemente, não. A
colocação das temáticas existenciais em sua poesia sugere uma não solução, como
na correlação, contudo isso seria um tema que excederia o nosso tra-balho,
tão somente de apontamento entre a poética de Belchior e a teologia da cultura
de Paul Tillich, profetismo, existência e o ser nas condições ameaçadoras e
desintegradoras da existência.
Doutor
em Ciências da Religião.
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